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O louco, a prostituta e a criança…um encontro eterno.

Tudo começa desde sempre. Parece que uma centelha do eterno é quem pede passagem, e esse fato vai nos moldando para muito além do agora. Tudo parece como que ao acaso, como um quebra-cabeça. Cada peça separada não traz tanto sentido, mas no todo é que a nossa visão se expande para além do que conseguimos ver de imediato. Partirei da infância, trazendo reflexões e vivências sobre ela, para juntos observarmos como essa fase da vida projeta-se em nós enquanto adultos.

Evito participar de grupos de WhatsApp, mas tenho alguns na minha lista. Um deles é um grupo de amigas da infância. Tenho um apego emocional por aquelas pessoas, porém volta e meia repenso se quero continuar neste grupo. Frequentemente, deparo-me com uma grande distância entre nós devido aos diferentes caminhos que trilhamos. Amo a cada uma delas, mas em inúmeros momentos me dou conta o quão difícil é o exercício do amor incondicional. O convívio com a diferença já é um exercício árduo na vida real, que dirá na vida virtual! (Acabo de me dar conta de que talvez seja por isso que continuo lá até hoje, para me exercitar…).

“O convívio com a diferença já é um
exercício árduo na vida real”

É curiosa a capacidade que todos temos de perdoar na primeira infância e como essa habilidade vai se perdendo ao longo dos anos, transformando-se em capacidade de guardar rancores. A menos que nos esforcemos como humanos adultos, essa lógica não se cristaliza.

Neste tal grupo virtual, muitas vezes já aconteceram discussões ferrenhas. Discussões daquelas que, em defesa da sua própria opinião, todas esquecem que convém que respeitemos as diferenças, que convém lapidarmos a maneira de falar mesmo quando não concordamos com algo, que escutar alguém vai muito além do que apenas deixar que ela fale. Esse contexto político, nacional e mundial, que estamos atravessando já deu margem para que todos os nossos dragões se apresentassem e nossas limitações, no que se refere ao diálogo, ficassem explicitas.

E que relação tudo isso tem com Dramaterapia? Eis que num desses momentos, uma delas lança suas palavras bem afiadas e pontudas, mas desta vez, para além de todo desabafo em forma de vômito virtual (daqueles que muitos de nós já fizemos um dia), ela nos entrega, de presente, parte de sua infância. A partir desse momento tudo o que eu lia começava a ter outro sentido. Toda a feiura daquele vômito ganhou beleza, no mais profundo sentido da palavra. Como que num passe de encantamento, o espelhamento aconteceu. Imediatamente surgem as perguntas: De que maneira minha infância estrutura minha vida adulta? Como a criança que fui ecoa em mim hoje, em meus pensamentos, sentimentos e ações? Cenas da minha vida surgem na memória como que fazendo uma ponte entre a criança que fui e a mulher que sou.

“De que maneira minha infância
estrutura minha vida adulta?”

Sim, o passo a passo, aponta o caminho, mas a trilha completa é que revela a imensidão da mata. Cada pessoa ganha dessa centelha do eterno seus presentes para a vida. E eu também ganhei os meus. Assim como não temos a resposta para a pergunta, quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?, eu também não sei se o que sou/tenho hoje eu trouxe das dimensões divinas ou ganhei aqui na Terra, da minha família. O fato é que um raro gosto pelas histórias de vida me acompanha desde sempre. Por outro lado, minha família é um caso a parte nesse contexto, o padrão de normalidade era ampliado a cada dia, particularidades eram sempre celebradas.

Todos os dias, saía da escola à tarde e ia buscar, com minha mãe, meu pai no trabalho. Nós morávamos num apartamento no centro da cidade, mas meu pai trabalhava num lugar afastado que naquela época era área rural. Hoje a cidade está ao lado. Para meus olhos de criança, era um lugar maravilhoso, com horta, pomar, jardim. Os cachorros que não podíamos criar no apartamento, meu pai levava para lá, para fazer companhia as pessoas que lá moravam.

Volta e meia ganhávamos saco de batata, pinhão, jabuticaba, vergamota…, dos familiares daquelas pessoas como agradecimento pelo trabalho que meu pai fazia. A cada dia, enquanto esperava meu pai terminar seu trabalho, convivia com aquela gente, um pouco estranhas, mas muito carinhosas comigo. Várias delas oscilavam em morar lá e morar na rua. Sendo assim, volta e meia encontrava-as na cidade. Quem eu mais gostava era o Dimas. Sujeito de andar cabisbaixo, ritmado, de ombro pendendo para o chão. A cada vez que levantava a cabeça era para dar um sorriso. Seu próprio sorriso o impulsionava a olhar para cima. Isso nele era especial.

“Ver, observar, contemplar a vida e
suas peculiaridades foi algo que exercitei
estando junto ao meu pai.”

Meu pai, que hoje é aposentado, dedicou toda sua vida profissional a psiquiatria. Durante a minha infância ele trabalhou num hospital psiquiátrico no interior do estado de Santa Catarina. Com o passar dos anos fui ampliando minha percepção para aquela realidade. Recordo-me de uma noite que, durante a janta, conversando com meu pai, consegui verbalizar uma profunda inquietação: “- Mas pai, como tu sabes quem tem razão, o familiar que quer internar a pessoa ou a própria pessoa que não quer ser internada, pois não se acha louca?” Meu pai me respondeu com um sorriso silencioso e, depois de um tempo, me diz: “- Tem que ver…” Nessa situação eu tinha nove anos e queria entender os mistérios da vida, do mundo, das pessoas. Ver, observar, contemplar a vida e suas peculiaridades foi algo que exercitei estando junto ao meu pai.

Com minha mãe, a situação não era diferente. Continuava a colecionar singularidades de vida: Por uma decisão conjugal, minha mãe parou de trabalhar quando meu irmão mais velho nasceu. Porém, ela não se continha em ser ‘do lar’, ela era do mundo. Não trabalhava oficialmente fora, mas estava sempre mergulhada em diversos trabalhos voluntários de cunho social. Um deles era alfabetização dentro de um prostíbulo. Claro que eu não a acompanhava nas idas ao prostíbulo, mas lembro que, por conta disso, muitas vezes íamos ao comércio da cidade e encontrávamos com aquelas mulheres que ocupavam o miolo da praça!

Eu não sabia por que, mas elas não ficavam todas juntas. Cada uma estava num local da praça, com roupas não tão bonitas assim, e independente da temperatura, o corpo estava sempre a mostra. Da que eu mais gostava era Dalva que sempre me abraçava e que, volta e meia, me dava um presente que ela achava na rua. Toda vez que íamos ao comércio, sabia que encontraríamos com ela naquele mesmo local, com uma perna dobrada, apoiada na pequena muretinha que demarcava aqueles canteiros e com a mão na cintura.

No entanto, havia algo de estranho, que eu não entendia à época. Frequentemente, no meio da conversa, aparecia um homem e o diálogo era interrompido. A cada vez, um homem diferente. Como despedida ganhava um largo sorriso da Dalva e a frase que sempre se repetia: “-Tchau! Outro dia a gente conversa mais!” Ela saía caminhando com o homem. Eu e minha mãe seguíamos o caminho que era só nosso.

“A história alheia, com bastante frequência,
coloca luz na nossa própria vivência.”

Com a Dramaterapia buscamos o encontro com nós mesmos, a partir da nossa própria história e/ou do encontro com o outro. Uma das minhas tarefas enquanto dramaterapeuta é criar esse ambiente de encontro, entrega e confiança. Se a escuta acontece, o diálogo é efetivo e o encontro germina. A escuta pelo corpo, o diálogo pela alma… A história alheia, com bastante frequência, coloca luz na nossa própria vivência. Se estivermos atentos, perceberemos com clareza a teia que nos uni.  

Hoje, crescida, tenho crianças ao meu redor. A elas desejo proteger de toda insanidade em que estamos inseridos, de toda prostituição ao qual nos entregamos, para que vivam sua infância mergulhadas em sua poesia nata.  E como fazer isso acontecer? Essa resposta é uma busca muito pessoal e íntima, de acordo com os tesouros que cada um trouxe do céu e alimentou na Terra. Numa próxima oportunidade irei compartilhar como eu experimento meu ser adulta com as crianças que caminham comigo.

Clique aqui para ler também o texto: A humanidade que habita em mim

Lúcia Vernet
Lúcia Vernet
Primeira Dramaterapeuta Antroposófica brasileira, atriz, arteducadora e pedagoga antroposófica. Trabalha com formação de adultos através de processos vinculados a educação, ao teatro e as histórias de vida. Já realizou trabalhos em várias regiões do país, bem como Argentina, Chile, Peru, Bósnia & Hezergovínia, Canadá e China. “Fatos reais ampliados por um olhar reflexivo serão apresentados para que cada leitor possa fazer um processo de reflexão interna a partir da experiência do outro, proporcionando uma comunhão entre a vivência alheia e a sua própria história de vida.” Saiba mais sobre Lúcia
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