Desmistificando o ócio: do utilitarismo ao desenvolvimento humano

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Desmistificando o ócio: do utilitarismo ao desenvolvimento humano

É uma imensa satisfação e honra poder participar desse novo projeto da LabQV, “n”ciclos. Ao ler a sua proposta me identifiquei imediatamente, pois apresenta um resgate de algo tão essencial ao ser humano, porém que foi sendo adormecido ao longo dos séculos, algo que lhe é tão caro e precioso, a sua humanidade, em outras palavras, a busca de si mesmo. Digo isso, não reforçando a abordagem antropocêntrica criada a partir da perspectiva humanista do século XVII e XVIII, mas do que lhe é inerente.

Nos dizeres do importante sociólogo Zygmunt Bauman, que já não está entre nós, a sociedade contemporânea, segundo ele, apressada e líquida, caracterizada pelo imediatismo e excitação dos sentidos, nos tornou seres superficiais e anestesiados às verdadeiras experiências que deveriam tocar as nossas vidas. Nesse sentido, não há como não recordar as importantes reflexões feitas pelo filósofo holandês Baruch Spinoza, ainda no século XVII. De acordo com o filósofo, a potência da vida é marcada pelos encontros agradáveis. Estes são ora negativos, reduzindo a nossa potência, ora são positivos, aumentando-a. Nessa relação dinâmica da vida, construímos as nossas experiências.

Porém, essas experiências devem ser diferenciadas das meras vivências, como nos apresenta o educador espanhol, Jorge Larrosa. Segundo Larrosa, muitas coisas nos acontecem ao longo do dia, todavia, são poucas que nos tocam, que mexem com o nosso interior. Isso acontece devido a um simples fato, não paramos para pensar em nós mesmos, e dessa forma esquecemos também de pensar no outro. Um princípio tão simples e básico que foi sabiamente transmitido por Jesus Cristo quando disse que deveríamos “amar o nosso próximo como a nós mesmos”. É nessa perspectiva que gostaria apresentar pelo menos de forma introdutória alguns apontamentos sobre o ócio.

Em nosso país o termo ócio apresenta, normalmente, uma conotação pejorativa e mal entendida, até mesmo no meio acadêmico. Quando ouvimos essa palavra nos remetemos basicamente a três possibilidades de interpretações que estão relacionadas a contextos socioculturais distintos que contribuíram para criar uma representação social distinta à concepção de ócio que adotamos.

Alguns quando ouvem falar sobre o assunto logo lembram, ainda que de forma superficial e equivocada, do ócio vivenciado na Grécia antiga, proposto pelo filósofo Aristóteles.  A ideia que tem é do ócio contemplativo, das aulas de canto, oratória, exclusivo dos homens gregos livres. Mas, esquecem que o propósito maior era possibilitar uma formação humana baseada no desenvolvimento do caráter e valores éticos. Dito de outra forma, as experiências da vida deveriam permitir que o homem se construísse como uma obra de arte, como apontado pelo professor Viktor de Salis ao se referir à Paideia grega.

Com a ascensão do Império Romano, que dominou inclusive a Grécia, destruindo alguns dos seus princípios de vida, surgiu a perspectiva do ócio utilitarista, isto é, aquele para recuperar as energias do trabalhador, e também como meio de divertimento nas arenas romanas. Portanto, o ócio grego foi completamente sufocado pela nova ideologia romana.

Uma segunda forma de identificação do ócio ocorre a partir da imposição de alguns dogmas da Igreja Católica quanto ao uso do tempo livre, instituindo, assim, a ideia de que a preguiça, a desocupação era um pecado. Dessa forma, surgiu a concepção de ociosidade, muitas vezes associada inadequadamente com o ócio. Nesse cenário tem-se a construção da representação social, por meio da influência das autoridades eclesiástica, de que “mente desocupada é oficina do diabo”, fazendo alusão e condenando a possibilidade de quaisquer tipos de divertimentos que não fossem nas festividades religiosas. Por sua vez, valoriza, sobremaneira, a dedicação ao trabalho.

Com o passar dos séculos ocorreram profundas transformações sociais que afetaram tanto o trabalho como o uso do tempo livre. O crescimento do capitalismo industrial, as reivindicações operárias, as mudanças nas relações laborais, enfim, uma série de fatores emergiu de forma fervilhante nas sociedades urbano-industrializadas. Assim, respaldados nos princípios da competitividade corporativa, tão marcante no século XX, que tem como enfoque sempre conquistar maior rentabilidade nos negócios, surge a proposta do ócio criativo apresentada pelo sociólogo do trabalho, Domenico De Mais. Este propõe que nos momentos de tempo livre é onde a nossa mente funciona de maneira fluida e livremente, podendo, assim, ter insights de novas ideias que refletirão diretamente na nossa capacidade laborativa. Não há nada de novo nessa concepção, pois os romanos já adotavam essa perspectiva.

Feita essa breve recapitulação sobre os diferentes estágios de entendimento sobre o ócio, gostaria de introduzir a proposta do ócio humanista, elaborada pelo educador espanhol, Manuel Cuenca. Como dito pelo velho sábio rei Salomão, “O que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do sol” (Eclesiastes 1:9), assim, resgatando os princípios basilares da perspectiva aristotélica, Cuenca nos apresenta uma nova proposta do ócio, denominada por ele, como humanista. Este é pautado pela perspectiva filosófica e pela Psicologia Social. Em virtude da extensão dessa abordagem faço, ainda que de forma incipiente, uma explanação sobre o conceito de ócio.

O autor relata que ócio clássico foi uma realidade que promoveu o desenvolvimento de aspectos fundamentais para a formação humana, do conhecimento e da educação. Pois em sua essência, essa perspectiva tinha o ócio como ação humana não utilitária. Assim, pela busca do desenvolvimento da alma se alcançaria a sua mais alta e distinta nobreza, a felicidade, atribuindo ao homem inteligência e liberdade (CUENCA, 2016). Assim, para Cuenca (2016, p. 10), “[…] o ócio é um ideal e não apenas uma ideia, é uma forma de ser, uma condição humana que é desejada, mas pouco alcançada”.

A psicóloga e doutora em ócio e desenvolvimento humano, Ieda Rhoden (2009) entende o ócio como vivência que não se encontra na atividade, mas, sim, na subjetividade. Monteagudo et al. (2013) relatam que é a subjetividade que aproxima as pessoas do ócio, pois apresenta uma materialidade na forma de ser e de estar no mundo conforme as circunstâncias envolvidas. Portanto, trata de uma disposição desejável, que possibilita o espírito de curiosidade e interesse, funcionando como agente catalisador entre o comportamento e a ação vivenciada.

Ademais, o ócio enquanto prática social centrada na subjetividade e conhecimento cotidiano da pessoa, não se apresenta de forma linear e causal, mas está imbricado de maneira dinâmica e complexa com os demais fenômenos sociais, independente dos tempos sociais. Seguindo essas características, Cuenca conceituou o ócio como:

[…] uma experiência integral da pessoa e um direito humano fundamental. Uma experiência humana complexa, (direcional e multidimensional) integral, isto é, centrada nas atuações queridas (gratuito, satisfatórios), autotélica (com um fim em si) e pessoal (individual e implicações sociais) (CUENCA, 2006, p. 14). (Tradução nossa).

Conforme a visão humanista, Cuenca (2000) considera o ócio como fenômeno psicossocial, objetivando promover o autoconhecimento, e também, o reconhecimento do outro. De acordo com Rhoden (2009) essa visão aborda a autorrealização como foco, colocando o ócio em posição de estruturador e afirmador do ser humano, tirando-o totalmente de uma concepção utilitarista. Segundo Rhoden (2009) o ócio humanista tem como objetivo extrair do homem o máximo do seu potencial, colocando-o em uma posição de protagonista da sua própria história, agindo em sua personalidade e autoestima.

Conforme Monteagudo et al. (2013) o ócio se distingue do simples entretenimento ou diversão – embora, estes sejam totalmente lícitos em suas vivências – pelo grau de envolvimento positivo, com o esforço, empenho e a constância com que pessoa se envolve em uma vivência. Dessa forma, a vivência de um ócio mais maduro e psicologicamente mais complexo, atua como fator de desenvolvimento pessoal, pois exige “[…] introspeção, reflexão, ação empenhada, consistência, formação em termos de aquisição de competências e habilidades” (MONTEAGUDO et al. 2013, p. 163).

Há muito que falar sobre a abordagem do ócio humanista, mas, por hora, cremos que conseguimos apresentar breve contextualização de sua proposta. Em síntese, essa concepção visa promover o desenvolvimento humano buscando resgatar a importância de se ter um tempo para pensar em si mesmo, e também no outro, de buscar o sentido da vida nas experiências diárias, em detrimento de um utilitarismo.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2001.

CUENCA, M. C. Ocio humanista, dimensiones y manifestaciones actuales del ocio (Documentos de Estudios de Ocio, n. 16). Bilbao, España: Instituto de Estúdios de Ócio/

Universidad de Deusto. 2003. Disponível em: http://www.deusto-publicaciones.es/deusto/pdfs/ocio/ocio16.pdf. Acessado em: 25 jan. 2015.

LARROSA, J. B. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. n. 19, p. 20-29, Jan/Fev/Mar/Abr 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf. Acessado em: 10 ago. 2014.

MONTEAGUDO, M. J. S.; CUENCA, J.; BAYÓN, F.; KLEIBER, D. A. Ócio ao longo da vida: As potencialidades dos itinerários de ócio para a promoção do desenvolvimento humano. Revista Lusófona de Estudos. V. 1, n. 2, p. 156-173, 2013. Disponível em: http://estudosculturais.com/revistalusofona/index.php/rlec/article/view/39/57. Acessado em: 27 set. 2015.

RHODEN, I. A experiência do ócio construtivo e a qualidade de vida. Textual/Fundação Cultural Assistencial Ecarta. Porto Alegre, v. 1, n. 6, p. 10-21, setembro 2005. Disponível em:  http://www.sinpro-rs.org.br/textual/Textual_set05.pdf. Acessado em: 08 abr. 2015.

SPINOZA. B. Ética demonstrada em ordem geométrica e dividida em cinco partes que tratam. Tradução Roberto Brandão. Disponível em; http://www.andre.brochieri.nom.br/livros/filos/Baruch-Spinoza-Etica-Demonstrada-a-maneira-dos-Geometras-PT-BR.pdf. Acessado em: 16 nov. 2015.

 

Marcos Maciel
Marcos Maciel
Graduado em Educação Física e doutor em Estudos do Lazer pela UFMG, atuando como docente na Universidade do Estado de Minas Gerais – Unidade Ibirité. É Coordenador do Grupo de Estudos de Ócio e Desenvolvimento Humano. “Os conteúdos seguirão uma abordagem reflexiva e crítica sobre as temáticas apresentadas, buscando despertar um olhar diferenciado, tendo em vista as perspectivas hegemônicas. Assim, adotamos como foco uma abordagem fenomenológica-hermenêutica, valorizando, assim, a subjetividade, sentidos e significados socioculturais para a análise do fenômeno discutido.” Saiba mais sobre Marcos
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