Traição e crescimento:
Uma reflexão sobre o livro
“A Alma Imoral” de Nilton Bonder.
Gaia, a deusa primordial, traiu Saturno, seu esposo. Este, temendo que um de seus filhos o destruísse e assumisse o seu posto de deus dos deuses, devorava sistematicamente todos os que ela lhe dava. Então, dando à luz Júpiter, Gaia o protege e em seu lugar, embrulhado em um manto, entrega a Saturno uma pedra que é devorada imediatamente. Júpiter cresce e destrona o pai, castrando-o, e efetivamente toma o seu lugar, dando início a um novo tempo, de clareza, de abertura e iluminação.
Eva, a mulher original, traiu Adão, seu companheiro. Abraão traiu seu pai. E todas as traições resultaram em mudanças profundas no ser social, no seio do núcleo original. O corpo, a partir de suas definições de DNA, tenta desesperadamente manter o status quo, procriar e atingir sua imortalidade através de sua semente fecundada. Para isso, cria regras, tradições, definições que protejam essa estratégia e lhe confira sucesso. Mas a alma, aquela que quer mais além do que se manter, quer a evolução. Não há lugar para a evolução dentro da tradição, e, por esse motivo, a alma busca a transgressão.
Quando trai, cada um desses personagens traiu a si mesmo, porque rompeu com a realidade a que fazia parte. Por outro lado, o traidor se move fiel à alma, que é transgressora e transcendental, e o traído, de sua parte, é o traidor da alma, pois insiste em resistir ao novo.
Traidor e traído são sempre o mesmo. A ira devotada ao que traiu é reflexiva. Crucificar o outro no lugar de assumir sua responsabilidade na ação iniciada, ainda é um padrão de um mundo antigo, resquícios do que já foi. O novo sempre convive em parte com o velho que resiste, porque o novo cresce nas bases do que já havia.
A partir de um contrato que não dá mais resultados, um dos elementos trai o que fora acordado e inicia um novo processo de desconstrução e reconstrução. Assim, a cada passo, a unidade social vai se transformando, a alma vai transcendendo.
Na transgressão, no romper com a ordem, no entanto, há sempre o risco do erro, do engano, do caos total. Uma rota adversa pode ser a cura, mas pode ser o câncer. Por esse motivo, o medo é a resposta mais comum de quem sofre a traição.
Os riscos de apego e traição são condições inerentes, o primeiro ao corpo e o segundo à alma. Há uma tensão clara no ser humano: preservar ou transgredir, manter-se ou evoluir. O apego é uma violência contra a alma, um atentado à vida e pode levar à depressão.
A traição põe em risco o corpo, sua unidade social, externa, e pode gerar ódio, incompreensão. Porque, quando um elemento de um grupo se põe em movimento, ou seja, rompe com o estado de acomodação, ele coloca em cheque todos os outros que também devem dar um passo para fora da estagnação. Mas a resposta em geral é uma reação ao colocar-se em movimento, dando um passo para trás quando deveria ser o de mover-se na direção do novo. A oportunidade surgida parece a esses como um risco real, e a tensão é intensificada.
Quando Adão e Eva desobedecem no Paraíso, estavam sendo fiéis à alma, rompendo com o corpo. Saindo de sua condição confortável, imortal e estabelecida, o corpo agora precisa entender a alma, tornar-se consciente, pois essa é sua única parte verdadeiramente imortal.
Uma nova ordem parece se mostrar real e efetiva agora, estabelecendo-se depois do período de crise a que se segue uma transgressão. Nessa nova ordem as pessoas parecem depender menos umas das outras nas suas relações, criando não laços, mas uma atmosfera de amorosidade e verdade, não perdem sua identidade nem colocam em risco sua trajetória, porque a trajetória dos que são Um é a mesma, objetiva, íntegra.
Não há sacrifícios, nem sacrificados, não há dor nem ira. As paixões refletem esse estado de ser equilibrado e harmônico, sem picos de felicidade seguidos de angústia. As pessoas se unem porque se reconhecem, não porque são complementares ou vão ganhar alguma coisa. Uma ordem onde a nivelação entre todos é o sentimento universal que liga tudo, une tudo, é tudo: o amor.
Clique aqui para ler outros textos de Fernanda Kurebayashi
/Este é o livro que inspirou este texto. Caso queira conhecer mais, clique na imagem ao lado.
Sobre o livro: A Alma Imoral
Um livro de profundo impacto na reflexão sobre o certo e o errado, a obediência e a desobediência, as fidelidades e as traições. “A alma Imoral” mostra que, num mundo de interdisciplinaridade, religião e biologia, tradição e sobrevivência, continuidade e mutação não são áreas desconexas. Mais do que tudo, num mundo que redescobre o corpo, faz-se necessária uma nova linguagem para descrever a natureza humana. Um convite a conhecer as profundas conexões entre o traidor e o traído, entre a marginalidade e a santidade, entre a alma e o corpo.
Cadastre abaixo o seu e-mail e
receba os destaques do nCiclos