Adoro carros conversíveis, embora não tenha. Então, quando quero ter a sensação de pilotar um, abro todas as janelas do meu carro, pego uma estrada e coloco a todo volume Non je ne regrette rien, na voz de Edith Piaf. Não existe nada mais conversível de que janelas abertas, cabelo voando e a voz de Piaf inalterada. Bem, talvez caiba ainda uma écharpe com fios de seda. O mundo passando e ficando para trás, a melodia entrelaçando seus cabelos, notas teatrais na pele que arrepia. A liberdade é total. Adoro liberdade e, principalmente, pessoas livres, independentes.
Adoro o olhar que se sustenta, olho no olho. É que nós, mamíferos predadores, somos muito reativos com o olhar que encara. É ameaçador, em geral. Em geral, mas no particular não. No especial de quem abdicou de sua herança cármica, nós, os renascentes, gostamos e muito do olhar no olho. É como um bluetooth que conecta moderna e instantaneamente os seres encantados. Sempre haverá encantamento no olhar que se sustenta, doce. Sim, há que ter doçura para ser moderno. Não há mais espaço nem tempo para a feiura dura dos que não sabem mais o que é ser doce, sem ser débil. A doçura está fazendo de nós, mamíferos predadores, seres verdadeiramente humanos. E belos.
Quando estou diante de alguém com domínio de si, orgulhoso de quem é ou completamente ingênuo, mas seguro de si como um pinheiro, como um plátano ou um eucalipto, uma dureza cheia de vida resistindo ao vento, barulhento na primavera porque tudo é barulhento na primavera, e, sobretudo, impávido, quando deparo com essa juvenil sobriedade, um sorriso indisfarçável se faz em mim. Sorriso de chuva que faltava há muito, de cheiro de terra molhada, de gatos brincando no quintal, totalmente absortos de si mesmos, quase indiferentes a mim, que, no entanto, os observa.
A beleza quieta de chuva morna caindo pelas folhas das árvores está lá, todos os dias que chove assim, todos os dias que não chove também, porque a beleza pode ser diferente, outra. O tempo pode ser outro a cada instante que passa. Está esperando o que, vendo a vida passar? Sim, enquanto isso, enquanto passa a vida, vou lendo um livro, vendo um filme, vendo a chuva cair ou deixar de cair, mas era boa de cair agora, enquanto isso, algumas pessoas estão comendo, correndo, pensando, ou vivendo suas vidas sem pensar, talvez.
Talvez pesando demasiado, querendo demasiado. Vidas de querências comedidas ou exageradas, esperando ou vendo passar o tempo para um novo dia, uma nova descoberta, um novo enigma insolúvel que dará sentido ao passar das horas. Só a beleza reconhecida existe. Aquela descuidada e desconhecida continua amanhecendo todos os dias, toda a vida, para nada. Para além da existência, o saber necessário.
Não, o passar da vida no tempo que corre feito dedos de vento pelo pescoço é a própria vida. A vida que se entende pelo que toca e sensibiliza. Pelo que entende de si e do outro, essa miragem acalentadora que é o outro. Para isso se nasce um dia. Ou se acorda, porque no fim do dia ainda é dia. A vida não espera, e enquanto espera, é vida. Um dia morno é tão vivo como um dia frio, uma noite quente, uma manhã que se espreguiça.
Agora, não tenho mais no peito um coração que bate. Ele pulsa, rítmico. Explode, incansavelmente, um taiko frenético, atabaque em transe. Mas não bate mais. Não quero mais a vida que precisa se abrir a socos, com gritos, que se expande pela distensão do músculo, o pulso fechado, o dedo em riste. Antes a dança que a luta, antes o bongô que o corpo a corpo de uma disputa. A alegria inesperada que um dia, uma hora, resolveu romper a casca e fincar raiz, uma alegria ousada e mal controlada, essa mesma, da janela aberta no peito, conversível, ela me faz amar ter acordado, e me faz amar todos os que cruzam comigo o caminho. Esse que é o caminho do meio.
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