As traves do gol

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As traves do gol

Vida, felicidade

Não acredito que Deus tenha colocado no meu campo duas traves e esteja esperando eu acertar o gol. Antes, prefiro acreditar que ele não existe.  Com tanto espaço, com tantos lados pra eu poder seguir, ele não estaria esperando que eu desistisse da liberdade por um possível prêmio do outro lado da rede. Desistir de sonhar pra procurar acertar um desafio imposto.  O que me desafia de verdade é eu não me perder de mim, de me entender quem sou. Se ao final eu descobrir que não sou mais do que um átmo de sua consciência ou se me deparar com não haver um deus, agora não me importa. 

Se ao final da vida eu perceber que apenas percorri um campo andando em círculos para lugar nenhum, já terei sabido mais sobre mim do que sei hoje. Porque o que sei é apenas a caminhada, o passo que dou. Hoje muito mais feliz que antes, do que tudo, e isso faz sentido pra minha vida. 

“Quando a vida começa senão no agora?”

VidaNão acredito na dor, no difícil, no estreito, na carência ou na tristeza. Não acredito que seja preciso sofrer para merecer uma vida melhor, depois. Depois quando? Quando a vida começa senão no agora? Eu não saio de férias depois de trabalhar árduo e pesado. Minha alegria é cotidiana, leve e quase rude. Quase rústica na demonstração de sua simplicidade. O que me traz alegria? O vento fazendo arruaça nas folhas das árvores, os gatos deitados sobre minhas pernas, haver vacas pastando do outro lado da cerca, amigos me mandando notícias, mas também o fato de ter lidado com um desequilíbrio emocional, ou de ter resolvido um problema operacional, ou de apenas ter tomado consciência da falência possível da eficiência.

Não acredito na permanência da dor, ainda assim, vivo com profundidade até mesmo a dor alheia, nas palavras expressas em um livro, no olhar que procura apoio ou solidão, no silêncio sentido, na dor que não reclama ou na que brada, eu sinto como se fosse no meu estômago, precisando represar o diafragma, não controlando lágrimas nos meus olhos. A dor me maltrata mesmo que não seja minha.

“A felicidade ensina também”

A felicidade ensina também. Ensina a agradecer, a aproveitar a oportunidade que não causa nenhum dano a outrem, e, sobretudo, que o amor é a supremacia absoluta dos sentimentos. Quem está feliz não cria confusão, não vai fazer mal a ninguém. Simplesmente porque felicidade não é um estado do ego, que se compraz pelo orgulho, vaidade. É um estado que se alimenta do amor, dar(-se).

Esse dar-se é muito ambíguo e parece até abstrato, mas não. É um pouco não fazer nada de vez em quando. Ficar olhando a chuva cair. Ler um livro ou plantar uma muda. Escrever uma poesia. Sim. Escrever poesia – ou ler – é a coisa mais inútil que alguém pode fazer, e por isso a mais bela. Não há beleza senão no supérfluo, no vazio, no inútil. Beleza, ela mesma para nada.

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Para haver espaço na vida para o belo, é preciso de vez em quando não fazer nada. Não esperar nada. Não ter o que falar ou o que pensar. Um pouco do silêncio que a música impõe (gentilmente). A vida carece desse elemento feminino, hoje mais do que nunca.


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Não há mais lugar para o lixo, não dá mais para continuar sujando a água, contaminando sem limites. A eficiência do mundo moderno está entupindo os rios, destruindo florestas, poluindo mares. O sucesso de alguns põe em risco a vida do planeta, e a atual ordem econômica é mais excludente do que já foi em toda a história desse homo sapiens – apenas porque hoje temos tempo para entender a falácia do modelo. O tempo é o principal inimigo da ordem estabelecida porque permite reflexão, contemplação, consciência. E é por esse mesmo motivo que os mantenedores do status quo vivem declarando em alto e bom tom que o mundo não pára, que não se perca tempo (parando, pensando, sentindo).

Hoje eu não estou disposta mais a jogar esse jogo com traves e tempo marcado. Hoje quero a liberdade de tempo. Eu quero o enquanto. O encanto.


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Fernanda Kurebayashi
Fernanda Kurebayashi
É uma experimentadora dos aromas, dos perfumes e dos sonhos. Uma alquimista, investigadora de cheiros e de sabores que assina suas criações colocadas em potes como “A Senhora das Especiarias”. Fernanda mudou-se para Gonçalves – pequena cidade de MG, lugar mágico encravado na Serra da Mantiqueira – a procura de uma vida longe do estresse do trabalho corporativo e da cidade grande. Sua história tomou uma nova direção e hoje surfa numa onda que é linda e também desafiadora: acreditar na vida e nas pessoas.
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