A humanidade que habita em mim

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A humanidade que habita em mim

 

Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não há quem pare. Se a negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde seja. Porque todos, todinhos, temos algo a dizer aos demais, alguma coisa que mereça ser pelos demais celebrada ou perdoada.

(EDUARDO GALEANO)

Caçula de quatro irmãos, filha de médico psiquiatra e educadora do ensino especial, neta de artesã e de benzedeira. Essa mistura foi o que me construiu. Desde que me conheço por gente, o teatro, a arte, fazem parte da minha vida cotidiana. Desde muito pequena essa relação foi se formando dentro de mim de uma maneira bem especial. Mas, para resumir essa história… Quando cheguei ao período da escolha profissional, minha dúvida era: teatro ou psicologia? Aos 17 anos escolhi o teatro. Influenciada por todos os trabalhos comunitários que acompanhei junto de minha mãe quando ainda não ia pra escola, a arte-educação em comunidade me atraiu na vida adulta. Quando pequena, sonhava em conhecer o mundo e as pessoas que nele vivem. Com o teatro e a arte-educação já pude conhecer um pedacinho do mundo. E por meio da Dramaterapia Antroposófica conheço um pouco mais da humanidade que habita em cada pessoa.

Quando iniciei meu contato com os conhecimentos antroposóficos, em 2001, minha sensação sempre foi de ir “tirando véus” e reconhecendo coisas que pareciam óbvias. Como que acordar em mim um conhecimento adormecido, um conhecimento nascido há algum tempo atrás, que toda (bis)avó tem sobre a vida e sobre o desenvolvimento do ser humano sem nunca ter lido nada a respeito. Foi essa mistura de simplicidade e complexidade que me instigou a ir além, e que me encanta até hoje. Falo simplicidade no sentido de que todos temos, não é raridade. E complexidade no sentido de que nossa humanidade, a humanidade de cada indivíduo, a humanidade que habita em mim, e que é por si só complexa, cheia de facetas que por ora eu vejo e por outras eu nem percebo a presença.

Compartilharei aqui um pouco dos meus pensamentos da época em que escolhi o teatro como faculdade, e o caminho que fui construindo para chegar à Dramaterapia Antroposófica. Tudo isso para que o contexto teatral se aproxime de cada pessoa que lê estas palavras. Para que meu caminho biográfico se revele. Para que a humanidade que habita cada ser possa também revelar-se. Para que o teatro, no mais profundo sentido da palavra, seja alimentado em cada um de nós.

Dramaterapia Antroposófica é uma formação recente, mesmo em nível mundial. Esse trabalho ainda não foi amplamente difundido. Portanto, tentarei, a cada texto, o diálogo! Proponho-me a recriar constantemente o mundo em meu interior, e a partir daí poder novamente projetar essa imagem interior para o mundo exterior. Um contínuo processo de autopercepção e percepção do mundo que me cerca.

Inicio com a pergunta: o que é Dramaterapia Antroposófica?

Drama significa teatro, atuar, fazer. A Dramaterapia Antroposófica é o autodesenvolvimento por meio do movimento, do atuar e jogar. Tornar-se mais vivo e livre, mais presente. Tornar-se consciente de quem se é e de como se colocar no mundo. Transformar padrões e diluir cacoetes. Alegrar o corpo e perfumar a alma… Esse processo é o que chamamos Dramaterapia, uma forma antroposófica de dramaterapia.

A holandesa Jessica Westerkamp foi quem concebeu essa somatória entre drama/teatro com processos terapêuticos embasados no olhar para o desenvolvimento do ser humano, proposto pelo austríaco Rudolf Steiner. Em 2008 iniciou a primeira turma de formação em Dramaterapia Antroposófica pela Associação Sagres (Florianópolis-SC), da qual fiz parte. Foi uma formação de três anos, com nove módulos de uma semana cada.

A formação em Dramaterapia já existe em vários lugares do mundo, porém, tendo como base o olhar para o desenvolvimento do ser humano proposto pela Antroposofia (Rudolf Steiner), esta foi uma iniciativa  pioneira no mundo.

Um processo de desenvolvimento pessoal baseado na atuação, focado em (re)conectar o pensar, o sentir e o querer – eu entendo o que estou vivendo?, tem sentido o que eu vivo?, minha vida está muito pesada ou leve demais? –, no sentido de ser útil ou não ao mundo. Para tanto, é possível usar o teatro e tudo que nele está incluído: jogos teatrais, atuação com contos de fadas, brincadeiras, playback, improvisação, clowning, máscara neutra, fantoches, poesia, música, construção de cena, solos biográficos, etc. Usamos nossa imaginação, nossa voz, nosso corpo.

Nesse contexto, a Dramaterapia Antroposófica nos impulsiona para a uma reconexão com nossa vida interior, um reconhecimento de nossa humanidade, de nossas limitações e possibilidades, de nossa dignidade. Com isso é possível trabalhar as tendências que cada um traz, buscando a consciência e o equilíbrio entre elas. O trabalho está focado no equilíbrio, na consciência e na sintonia entre essas forças que atuam em nós, em nossos comportamentos. De alguma maneira, elas são orientações, do ponto de vista anímico, que possuímos enquanto indivíduos e podemos oferecer ao coletivo. Também temos temperamentos e nossas personalidades são únicas. Portanto, a forma como cada pessoa coloca isso no mundo e nas relações irá variar.

Muitas são as possibilidades de trabalho na Dramaterapia Antroposófica

A Dramaterapia pode ser desenvolvida com pessoas de qualquer idade, com ou sem distúrbios mentais, com ou sem qualquer limitação física, com ou sem conhecimento sobre a Antroposofia, como processo terapêutico ou somente para a manutenção da salutogênese de quem o faz. É claro que, dependendo da pessoa e das suas possibilidades físicas, mentais e sociais, a proposta de trabalho muda. Também é possível trabalhar em grupo ou individualmente. Em grupo, as diferenças entre as pessoas se tornam evidentes e potencializam o trabalho. O próprio padrão de normalidade passa a ser questionado a partir das referências trazidas por cada um. Os preconceitos podem ser diluídos e transformados em “novos” conceitos. A autoimagem cristalizada se dilui e um “novo” ser pode nascer.

Faz parte de um contexto histórico atual a pressa, as coisas práticas, a falta de ritmo, a vida noturna, a realidade virtual, etc. Tudo isso, de um modo geral, nada contribui para um processo de autoconhecimento. Porém, o autoconhecimento é necessário para o desenvolvimento autônomo de qualquer ser humano.

Cada vez mais, estamos passando por um processo de intelectualização, o que nos distancia, a princípio, de nossos instintos e intuições, de nossa biografia e de nossa ancestralidade, de nossas raízes e de nossas sementes. Um processo de individualização está posto. Porém, como fazê-lo apropriando-se de nossa própria história pessoal, utilizando-a a nosso favor, com autoconhecimento e humanidade para consigo e para com o outro?

Sendo assim, necessito de sua ajuda! Tenho total clareza de que vivenciar essa proposta é muito mais interessante do que ler sobre ela, e que talvez tudo isso só poderá ser realmente compreendido quando vivenciado. Nesse caso, tudo o que poderia ser facilmente entendido pelo contato direto deve necessariamente depender de palavras e conceitos intelectuais. A meu ver, a Dramaterapia Antroposófica jamais poderá ser profundamente entendida sem que seja praticada. Apesar disso, tentarei, através desse canal de diálogo, elucidar como a Dramaterapia acontece. Trarei reflexões sobre a prática, exemplos mais palpáveis dessa atuação. De todo modo, estarei sempre aberta para os esclarecimentos que possam surgir. Espero, mais do que tudo, estar provocando, no leitor, uma curiosidade intrigante a ponto de tirá-lo do mundo virtual e levá-lo a uma experiência real. Tomara!

Lúcia Vernet
Lúcia Vernet
Primeira Dramaterapeuta Antroposófica brasileira, atriz, arteducadora e pedagoga antroposófica. Trabalha com formação de adultos através de processos vinculados a educação, ao teatro e as histórias de vida. Já realizou trabalhos em várias regiões do país, bem como Argentina, Chile, Peru, Bósnia & Hezergovínia, Canadá e China. “Fatos reais ampliados por um olhar reflexivo serão apresentados para que cada leitor possa fazer um processo de reflexão interna a partir da experiência do outro, proporcionando uma comunhão entre a vivência alheia e a sua própria história de vida.” Saiba mais sobre Lúcia
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