“Atividade física é saúde!” “Atividade física é vida!”. Partindo desses slogans que já viraram jargões, tanto em nível popular quanto entre os profissionais da saúde, é que gostaria de refletir neste artigo. Essas afirmativas carregam uma representação social que vinculam de forma linear e casuística a atividade física, por si só, como promotora de saúde.
Em virtude dessa representação essa vivência é concebida como o “carro chefe” de um discurso biomédico e político para promover melhoras orgânicas que possibilite promover uma pretensa “saúde perfeita” à maioria da população. Assim, por meio de um discurso permeado de cientificidade, instituiu-se uma sistematização e mecanização do movimento humano. Portanto, a atividade física foi “desumanizada” ou “coisificada”, passando, sobretudo, a ser vista como uma prática de saúde, um meio para se alcançar determinados interesses médicos, políticos e econômicos.
Em outras palavras, normalmente, sempre nos reportamos à sua vivência para se alcançar um fim: “perder uns quilinhos”, ter um corpo “sarado”, como promoção de saúde, prevenção ou tratamento de doenças, reduzir o estresse, socialização. Enfim, tantos outros exemplos que poderíamos dar que a denoto como um “santo remédio” para diversas mazelas sociais. Todavia, são raras as vezes que escutamos falar da vivência da atividade física enquanto um fim, isto é, realizá-la por pura satisfação, e não como um meio. Assim, entendo ser necessário pensar na atividade física enquanto componente ontológico, pautada pela subjetividade que envolve de forma holística todo o ser humano, dando sentido à vida.
Para tanto, adoto como concepção filosófica e teórica os princípios das experiências de ócio. Diante da importância dessas experiências na vida das pessoas, Cuenca (2008, p. 42) as classificam como:
Rhoden (2008) entende essas experiências como um fenômeno psicossocial, com vinculação ao desenvolvimento humano e de caráter formativo. Ademais, segundo a autora, são pautadas pela subjetividade e satisfação, que emergem do interior do ser, não sendo possível avaliá-las “externamente”, tão somente pelo âmbito psicológico. Em outras palavras, essas experiências buscam superar o mero realizar de uma atividade, dando um novo sentido e ressignificação ao que é vivenciado.
Essa proposta possibilita um refletir mais dinâmico das diferentes vivências culturais cotidianas. Francileudo e Martins (2016, p. 18), propõem que o ócio propicie às pessoas que o vivenciam:
As experiências do ócio requerem a busca de sua interpretação dada pelas pessoas que a realiza em diferentes contextos socioculturais e históricos (MONTEAGUDO; CUENCA, 2012; CUENCA; PRAT, 2012). Essas experiências trazem um significado atribuído na relação da pessoa e a vivência, não de forma dicotômica, mas heurística, sendo o ócio o fenômeno consciente dessa prática social. Isso ocorre porque a pessoa é um ser consciente em relação a si mesmo e do mundo a qual está inserida.
Além da existência dessa consciência, outra característica que marca a vivência de uma experiência é a intencionalidade. Esta consiste em uma qualificação no ato da escolha e da atribuição de um sentido à vivência. No entanto, há entre consciência e vivência um vínculo essencial que só ocorre na intenção originária dessa inter-relação.
Considerando esses apontamentos, diferencio os termos vivência de experiência, tendo em vista as representações que lhe são atribuídas (MONTEAGUDO; CUENCA, 2012; LARROSA, 2002). A vivência está relacionada ao fato da existência, de viver uma ação, tendo um significado social semelhante, sem, no entanto, representar algo necessariamente significativo. Por sua vez, a experiência resulta como processo de uma vivência, contudo, é subjetiva e qualificada individualmente.
Para exemplificar, cito o ato de assistir um filme em um cinema. Diversas pessoas vivenciam a mesma ação, atribuindo-lhe o mesmo significado, um filme caracterizado, por exemplo, como romance. Todavia, cada um apresenta segundo as suas percepções e experiências anteriores, e até mesmo, conforme o estado psicológico no momento, um sentido diferente ao filme. Dessa forma, a vivência é qualificada subjetivamente pelo sentido atribuído individualmente, gerando uma experiência ímpar. A experiência de ócio segue esse princípio.
Essa proposta é corroborada por Cuenca e Prat (2012) e Rhoden (2009), ao entender a experiência como um fenômeno pessoal que pressupõe um conjunto de características que costumam acontecer em circunstâncias da vida cotidiana. Rhoden (2009) estabeleceu uma relação de 11 atributos psicológicos, segundo diversos estudos realizados na área da Psicologia para caracterizar uma experiência de ócio. Ainda conforme a autora em tela, a presença de no mínimo três atributos no mesmo contexto geraria interações psicodinâmicas e, impactos sobre as pessoas, tornando-as protagonistas dessas experiências.
1) percepção de liberdade;
2) motivação ou significado intrínseco (autotelismo);
3) desfrute ou estados afetivos positivos;
4) desenvolvimento humano;
5) sociabilidade ou encontro interpessoal;
6) descanso ou relaxamento;
7) ruptura ou evasão;
8) desafio;
9) implicação psicológica;
10) auto expressão; e, finalmente,
11) os estados introspectivos: o encontro consigo, a com a natureza ou com a beleza (apreciação estética) (RHODEN, 2009, p. 1248).
Considerar essa intencionalidade subjetiva é que permite explicar a percepção de uma mesma vivência realizada no mesmo tempo-espaço, ser compreendida como satisfatória ou não por distintas pessoas. Contudo, diante de sua dinamicidade, essa percepção pode variar conforme as mudanças das circunstâncias, contextos sociais e pessoais, quando de sua nova realização; podendo, assim, ter um significado totalmente distinto da experiência anterior.
Tendo em vista esses apontamentos iniciais, trago à discussão a concepção de atividade, segundo a perspectiva biomédica, “como qualquer movimento corporal produzido pelos músculos esqueléticos, que resulta em gasto energético maior do que os níveis de repouso” (CASPERSEN, POWELL, CHRISTENSON, 1985). Percebemos que por meio dessa definição o estabelecimento de um aspecto utilitarista focado no aumento do gasto energético de modo a estimular o funcionamento “das engrenagens da máquina humana”, pois esta se não estimulada, “enferruja”. A adoção desse discurso, talvez, justifique, apesar dos hercúleos esforços do Estado, da comunidade científica vinculada à área médica e organismos não governamentais, em promover o incentivo a um estilo de vida fisicamente ativo, o insucesso em alcançar as metas propostas referentes à mudança de comportamento da população.
Por sua vez, advogo a necessidade de se mudar o olhar sobre a atividade física, focando-a enquanto uma experiência agradável e autotélica. Pois, deve-se buscar ressignificar os movimentos em detrimento de uma prática puramente procedimental. Em outras palavras, se faz necessário desenvolver uma percepção da sensibilidade dessas experiências que promova o encontro da pessoa consigo, com o outro, e também, com o meio em que vive; possibilitando assim, uma fluidez na expressão de sua personalidade e das relações sociais.
Por fim, ao refletir dialeticamente sobre a atividade física enquanto meio utilitarista ou como experiência de ócio, se faz necessário repensar uma proposta de formação educativa visando um despertar para a compreensão do sentido e significado dessa vivência. Para tanto, nos ancoramos em Francileudo e Martins (2016, p. 16), “[…] a experiência de sentido para a vida que aporta o ócio é algo que não se pode elaborar, dispor e dirigir, senão alguma coisa que cresce e floresce, na medida em que se cultiva e se privilegia o desenvolvimento pessoal contemporâneo”, ao propor que a atividade física humanizada, seja em qualquer contexto social, escolar, academias, empresas, clubes, possa ser valorizada enquanto componente ontológico ao ser. No entanto, essa perspectiva não nega a realidade de outras abordagens dessa vivência.
CUENCA, M. C.; PRAT, A. G. Ocio experiencial: antecedentes y características. ARBOR Ciencia, Pensamiento y Cultura. v. 188-754, marzo-abril, 2012. Disponível em: Acessado em: 10 ago. 2014.
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MONTEAGUDO, M. J. S.; CUENCA, M. C. Los itinerarios de ocio desde la investigación: tendencias, retos y aportaciones. SIPS – Pedagogía Social. Revista Interuniversitaria. V. 1139-1723, n. 20, p. 103-135, 2012.
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